No final de 2019, Marta Dúran foi de boleia até à Guiné-Bissau. No trajeto, levava também uma bicicleta, que usou para percorrer "70 a 80 Kms" por dia. A criadora de "As boleias da Marta" falou à FORUM desta e de outras viagens, que trouxeram a certeza de querer "encontrar o caminho que permita viver um sonho". Pelo meio, a líder de viagens de 24 anos deixa-te ainda algumas dicas, para o caso de quereres partir à aventura.


Em várias entrevistas, referiste a importância do voluntariado no teu gosto pelas viagens. De que forma é que se estabeleceu esta ligação?
Comecei por fazer voluntariado nacional, aos 16 anos, numa associação de animais abandonados. Assim que entrei no Ensino Superior, juntei-me a uma associação sem fins lucrativos que se chama GASTagus. Durante o ano, fazíamos angariação de fundos, formações e voluntariado nacional, com o objetivo de, durante o mês de agosto, partir em missão internacional. Foi assim que, em 2014, fui para Moçambique, aos 18 anos. Foi a primeira vez que senti um choque de culturas, ao trabalhar com uma comunidade muito isolada que vivia com dificuldades, em que tinha de acartar água todos os dias, por exemplo. A alimentação também era muito diferente. Foi a primeira vez que abri um pouco a minha mentalidade. No final desse mês, voltei para a universidade. Foi díficil, depois de um mês tão intenso, voltar a Lisboa e à rotina. Por isso, continuei neste projeto. Voltei a Moçambique e fui também a Cabo Verde. Foi assim que surgiu o meu interesse por explorar novas culturas, conhecer novas pessoas, outras gastronomias. Bem, na altura, era um pouco esquisita e não comia nada, mas hoje em dia já como tudo (risos). Aprendi com as viagens, lá está.

O momento do regresso, como dizes, parece ter sido importante para perceberes que querias voltar. De que é que sentiste falta, assim que chegaste a Lisboa?
Acredito que o voluntariado é um pouco egoísta. Nós, que vamos, ganhamos muito mais do que as pessoas que nos recebem. Até porque, no caso do voluntariado de curta-duração, a mudança que se cria no local é mínima, quase ínfima. Acredito mesmo que a mudança está mais nós e eu senti isso. Num mês, senti que a mudança em mim foi tão grande, que não só queria voltar como queria tentar mudar as mentalidades das pessoas que me rodeiam. Penso que é a maior mudança deste tipo de voluntariado: se eu mudo, quando volto, deixo a sementinha nos meus amigos, na minha família. Foi assim que consegui que vários amigos meus fizessem voluntariado nacional e internacional. É mudança é sobretudo pessoal. A mudança maior está sempre em nós.

 

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O que é que sentes que ganhas em viajar? Que é outra forma de perguntar: O que é um jovem pode ganhar em viajar?
Ui (risos)! Ganham tudo o que não ganham no dia a dia. Desde logo, aprender uma nova língua, por exemplo. Eu sempre falei bem inglês, mas melhorei imenso o meu espanhol e o meu francês. E também aprendi crioulo e um bocadinho de nepalês. Isto acontece porque tens de te "desenrascar" e aprender uma nova língua. São as tais softskills que hoje em dia se falam tanto. A viajar, não encontras problemas, encontras soluções. Ganhas autonomia, responsabilidade... E outras coisas, como aprender a cozinhas outras gastronomias, conhecer pessoas diferentes de ti, ganhar cultura geral, conhecimentos de história...

Viajar pelo Mundo poderá ser visto como algo inalcançável por muitos jovens, nomeadamente por razões financeiras. Em outras entrevistas, garantiste que autofinanciaste todas as tuas viagens. Pensas que viajar é mais concretizável do que a maioria dos jovens possa pensar?
Eu também achava uma utopia que, aos 24 anos, já tivesse viajado tanto quanto viajei, com o pouco dinheiro que tenho. Na época mais alta do Turismo, para financiar todas as minhas viagens, conduzo um Tuk-Tuk. Ou então, durante as próprias viagens, acabo por encontrar formas ou de financiamento ou de reduzir gastos, seja através de voluntariado, de workaway (trabalho por estadia, alimentação ou até doação). Há várias formas de autosustentar uma viagem e tenho conseguido fazê-lo para todas as viagens que fiz. Isto à excepção de um intercâmbio que fiz em Macau, quando ainda estava a estudar, em que as despesas foram pagas pela minha mãe. Como ainda era académico, ainda tive direito (risos). Tirando esse exemplo, a lógica é sempre a de encontrar um solução: de que forma é que vou realizar aquilo que quero? Hoje em dia, estou a tentar tornar as viagens um trabalho, criando o meu roteiro e tornando-me líder de viagens.

 


«Comecei a andar à boleia por não ter dinheiro, mas continuei porque é uma boa forma de quebrar preconceitos»


 

 

Outra das soluções que encontraste, nomeadamente durante a tua viagem mais recente, foi andar à boleia. Em entrevistas passadas, já disseste que andar à boleia não se resume apenas a "esticar o dedo". Podes descrever-nos o mundo das boleias?
Comecei a viagem à boleia depois da licenciatura, por não ter muito dinheiro para poder viajar. Comecei pela Europa, por ser mais perto, embora seja também o mais caro para viajar. A solução que encontrei foi viajar à boleia e recorrer ao couchsurfing (dormindo em casa dos locais gratuitamente). Comecei a andar à boleia por não ter dinheiro, mas continuei porque é uma boa forma de quebrar preconceitos: é preciso não julgar a pessoa que parou para me dar boleia, é necessário conhecer locais... Só dessa forma é que consigo ter experiências autênticas. É a forma de conhecer pessoas reais e criar histórias e caminhos reais. Deixei de ficar em hostéis, porque não criava a história que queria criar: encontrava muitas pessoas mas que eram, tal como eu, viajantes. É por isso que viajo bastante à boleia. Outra forma foi a que utilizei na minha viagem mais recente, em que fui de bicicleta até à Guiné-Bissau. O início fiz praticamente todo à boleia. A partir do Saara Ocidental fiz à boleia com a bicicleta, que foi toda uma outra aventura (risos). Em todas as boleias, fiquei a dormir em casa das pessoas que me deram boleia, por exemplo.

Como correu a viagem? Como é que avalias?
Cinco estrelas! Aliás, milhões de estrelas, que era o que via todas as noites (risos). Foi a viagem mais exigente que já fiz, sobretudo fisicamente, porque ainda não tinha feito viagens como esta, em que andei 70 a 80 Km de bicicleta por dia. A experiência cultural foi incrível, porque as pessoas são incríveis. Uma das experiências mais fascinantes foi andar no maior comboio do mundo, que faz um percurso de 700 Km para transportar minério e que os locais utilizam para se deslocar.

 

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Achas que há princípios importantes a reter, para quem quer viajar à boleia, tendo em conta a tua experiência?
Acima de tudo, confiança. Temos de estar confiantes no que estamos a fazer. Se tivermos medo ou insegurança, não vale a pena, estamos desconfortáveis e vamos atrair coisas más. Devemos ter confiança em como tudo vai correr bem e ter pulso firme para o caso de não acontecer. Utilizar roupa discreta poderá também ser importante. Por outro lado, eu gosto de trabalhar a abordagem, procuro falar com as pessoas nas estações de serviço, onde elas estão paradas ou a comer, o que me permite também escolher as pessoas. Quando isso não é possível, são as pessoas que nos escolhem e aí temos de saber avaliar quem nos quer ajudar ou quem quer mais do que isso.

Outra das coisas que dizes ser necessário é paciência, saber lidar com a espera...
Sim... [pausa]. Muita paciência. E contra mim falo, que estou habituada a que as coisas sejam relativamente rápidas. A experiência acaba por tornar o processo mais rápido. Mas também já tive de desistir. Aconteceu apenas uma vez, na Eslovénia, em que estava há mais de três horas à espera e estava muito frio. Essa é outra coisa bastante importante: estudar o sítio onde vamos pedir a boleia e escolher um local onde os carros parem facilmente, de fácil acesso, com bastantes carros... Há até um site que é uma espécie de Wikipédia dos hitchikers - o HitchWiki - que te diz, face ao teu percurso desejado, o melhor local para procurares boleia.

 


«É habitual ouvir os nossos pais ou nossos amigos mais velhos dizer "viaja agora ou vais arrepender-te quanto tiveres a minha idade". A hora de viajar é agora, não devemos deixar para o depois»


 

Ainda acerca de dicas, tens um website onde publicas artigos sobre viagens. Sentes que essa é uma tentativa de, para usar a expressão que utilizaste há pouco, "espalhar a semente" do gosto pelas viagens?
Sim, claramente. O meu objetivo é espalhar essa semente pelas pessoas, jovens e não jovens, que nunca tiveram oportunidades de viajar. É habitual ouvir os nossos pais ou nossos amigos mais velhos dizer "viaja agora ou vais arrepender-te quanto tiveres a minha idade". A hora de viajar é agora, não devemos deixar para o depois. Quero mostrar que há formas de viajar mais baratas, e não precisa de ser à boleia ou de bicicleta. Agora, estou focada no Instagram, é a partir daí que tenho partilhado as minhas viagens, as minhas dicas e respondo a perguntas.

Sobre viagens e voluntariado, tens trabalhado com a Associação Gap Year. Qual é a receção da ideia de um gap year por parte dos jovens portugueses?
Estive recentemente, durante um mês, a falar sobre Gap Year e a contar a minha história ao público. Muitos já tinham ouvido falar, mas não achavam que era real, principalmente fora das grandes cidades. Obviamente, acham uma ideia incrível, mas surge aquela linha certa que está incutida na nossa sociedade: Ensino Secundário-Ensino Superior-Mercado de trabalho. O Gap Year é uma ideia que vai ganhar implementação, mas talvez daqui a uns anos. Para já, os pais dos jovens não estão preparados para ela. Nem toda a gente tem de fazer um Gap Year: há pessoas que estão muito esclarecidas sobre o que querem fazer da vida e ainda bem. Mas, para os que estão mais confusos, parar não é perder tempo, para é ganhar tempo. Aliás, acredito que o que se ganha, durante um ano de Gap Year, pode ser muito mais do que durante um ano na rotina universidade-casa casa-universidade. Mas nem toda a gente vê isto desta forma. O jovem tem de se sentir preparado para este tipo de coisa. Não é qualquer pessoa com 18 anos que está preparada para tomar um decisão destas. Eu própria não estava

 

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Podes falar-nos do teu novo projeto? O que é ser líder de viagens?
O meu caminho foi montanhoso, com muitas dúvidas, com pressão dos pais, dos amigos... "É possível fazer isto da vida? Vais só viajar?". Eu dizia que sim, mas tinha dúvidas, porque eu própria não sabia. Agora, penso que encontrei um rumo: ser líder de viagens. Penso que pode ser um exemplo, para encontrarem um caminho para viverem daquilo que gosta. Para viverem os seus próprios sonhos, como eu fiz com o meu. Um líder de viagens não é um guia turístico. É alguém que já esteve no país onde vai levar outros viajantes e que conhece os spots escondidos, os truques, a gastronomia, a língua... É uma forma de viajar em aventura de forma mais segura. Neste caso, é a oportunidade de viajar comigo para a Guiné-Bissau, onde vivi durante um ano. Tive experiências que quero replicar e partilhar com outras pessoas. Sei que é difícil, mas quero criar a viagem da vida das pessoas que vão comigo. Ser líder de viagens implica também continuar a viajar. É isso que quero fazer, descobrir e autodescobrir-me. A maior descoberta está sempre em nós.