Fatu Banora nasceu na Guiné-Bissau há 22 anos e veio viver para Portugal aos 8. Hoje, é estudante de Psicologia no ISPA – Instituto Universitário e, em outubro de 2022, recebeu o Prémio António Brandão de Vasconcelos – galardão atribuído pelo IPAV para apoiar a educação superior de jovens integrados na Academia de Líderes Ubuntu. Em entrevista à FORUM, Fatu aborda a importância da sua participação neste programa, recordando algumas das fases da sua vida e algumas das marcas que são, ainda hoje, difíceis de apagar. 
 


 
Quando entrou a Academia de Líderes Ubuntu na tua vida?
 

Em 2017, fui à Guiné-Bissau e quando voltei de férias entrei na Associação de Estudantes da Guiné-Bissau em Lisboa. E ali continuei a crescer, a aprender, a ter pessoas ao meu lado que estavam na mesma onda. Nesse período, apareceu a Academia de Líderes Ubuntu. Decidi participar e foi a melhor decisão que podia ter tomado naquela altura na minha vida.

 


Porquê? Que impacto teve em ti?
 

A Academia veio ajudar e dar ferramentas. Num primeiro passo, ajudar a compreender-me e a começar a dar respostas a questões que estavam muito mal resolvidas. A Academia permitiu-me fazer as pazes com a minha história e perceber qual era a origem da minha revolta. Por outro lado, teve impacto na minha autoestima, porque comecei a olhar para mim e a perceber que sou capaz. Foi aí que comecei a saber olhar mais para os outros também. A Academia foi a base dessa transformação e, ainda agora, estou a sentir o impacto. 


Decidiste prosseguir estudos no ensino superior, optando pela licenciatura em Psicologia. Quando percebeste que era essa a opção que mais te interessava?
 

Passei por várias ideias, mas, entre todas, a Psicologia foi aquela que me chamou mais a atenção, por se ligar ao que quero que seja a minha missão – poder dar respostas às pessoas, ajudar as pessoas a encontrar respostas para si. Isto porque eu sei o impacto que nasce de não conseguirmos encontrar as respostas certas para as várias emoções que sentimos. 

  

 


E o prémio António Brandão de Vasconcelos veio ajudar-te?
 

Muito. Veio tirar um peso enorme, que seria estar a trabalhar e a estudar ao mesmo tempo, para pagar as despesas no Ensino Superior. Para mim, este prémio é também um voto de confiança. Se já era um desafio conseguir ter os melhores resultados possíveis por mim, agora, com esta responsabilidade acrescida, terei o cuidado de dar o meu melhor, para que quem confiou em mim se possa orgulhar de me ter ajudado. 


Como foi o teu percurso antes de vires para Portugal?
 

Nasci num seio muçulmano, a aprender as vivências do Islão. Tive uma infância muito conturbada devido a questões de saúde, muito presentes até aos 8 anos. Estive um ano e meio internada num hospital, enquanto aguardava o resultado do processo de protocolo de saúde, para poder vir para Portugal. 

 

 Fatu


Dirias que tiveste uma infância com oportunidades?
 

Não fui uma criança com muitas oportunidades, assim como todos os meus irmãos. Vi outras crianças com mochilas novas a ir para a escola e eu e os meus irmãos a não termos essa possibilidade… Como é que fazes uma criança de seis ou sete anos perceber que não há problema nenhum em não ter uma mochila nova? Que pode ir para a escola com o caderno dentro de um saco de plástico?


Eras feliz?
 

Era feliz, tinha os meus irmãos. Apesar de tudo o que aconteceu, quando penso nessa fase, não penso numa criança que poderia dizer “não sou nada feliz”. As fases mais marcantes, para mim, foram o internamento e a história de um irmão meu, que mexeu connosco. Ele foi enviado para a Gâmbia com o intuito de aprender a cultura islâmica – saber ler e interpretar o Alcorão. O meu irmão foi escravizado e virou uma criança talibé [crianças que, define a UNICEF, são “vítimas de tráfico, exploração e abuso, expostas à mendigagem e ao trabalho agrícola em condições precárias”]. Nós só nos apercebemos do que o irmão realmente estava a passar quando chegámos a Portugal. Ele estava tão traumatizado que, juntamente com outros dois, fugiu da Gâmbia e voltou para a Guiné-Bissau. Os meus pais foram movidos pela fé e não tiveram a capacidade de perceber que aquilo poderia acontecer ao meu irmão. Tal como não tiveram a capacidade de evitar que nos acontecessem certas coisas de que prefiro não falar, neste momento.

 


Depois da vinda para Portugal, como se organizaram?
 

Nos primeiros tempos, o meu pai não estava a trabalhar, as coisas eram difíceis. Ficámos em casa de tios. Chegámos em junho de 2008, em julho, eu já estava a viver na casa de uma tia, porque o meu pai queria estar mais livre para ir trabalhar e eu precisava mesmo de estudar. Eu tinha oito anos e chorava quase todos os dias por ser a mais velha e porque gozavam comigo por causa da língua, uma vez que ainda não sabia falar português. Essa fase foi também difícil, porque nós estivemos cinco anos sem autorização de residência. No meio de todos os desafios, eu comecei a ser seguida pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ). Acho que houve uma denúncia na escola primária, alegando que eu não ia tão bem cuidada para a escola, mas nunca me chegaram a dizer qual o motivo da sinalização. Depois, no 5.º ano, começou uma fase muito conturbada.


Porquê?
 

Comecei a sentir muita revolta. Vi uma reportagem que me trouxe memórias de coisas que me tinham acontecido na Guiné-Bissau. Essa reportagem despertou em mim muitas questões. Tudo isto coincidiu com uma fase de rebeldia, em que faltava às aulas, não queria saber da escola. Eu não transmitia em nada aquilo que eram os valores que me transmitiam em casa. Andava revoltada e achava que era o mundo contra mim. O 5.º e 6.º anos foram muito duros. Continuávamos a ir ao tribunal para as audiências e entrevistas, no âmbito do meu processo da CPCJ, e “do nada” o processo foi encerrado. Agradeço muito isso à minha tia-avó porque ela esteve sempre ali a lutar por mim. Nesta altura, eu já estava em casa dela, onde vivo ainda hoje, há quase 14 anos. Viver com ela foi das melhores coisas que me podiam acontecer. Foi nesta casa que se lutou muito para que o meu processo na CPCJ pudesse ser encerrado. 

 


«Na escola era onde eu me sentia mais à vontade para dizer, não por palavras: “Estou muito revoltada com a vida, a vida está a ser muito injusta comigo então também não me apetece estar aqui”»

Como eras enquanto aluna? 

Eu ia às aulas, esforçava-me por não chumbar, mas em casa era uma coisa e na escola era outra. Na escola era onde eu me sentia mais à vontade para dizer, não por palavras: “Estou muito revoltada com a vida, a vida está a ser muito injusta comigo então também não me apetece estar aqui”. Tinha muitas faltas disciplinares por mau comportamento, olhava para as pessoas e não as respeitava, não as tratava com a dignidade com que merecem ser tratadas, nomeadamente os professores. Eu e alguns colegas achávamos que tínhamos gosto de maltratá-los. Hoje, eu olho para esse período e envergonho-me, não me orgulho de ter sido aquela pessoa, de ter feito alguém sentir-se mal. Se não fossem as pessoas que tenho em casa, a esta hora não sei onde estaria.


Qual foi o momento de transição em que percebeste que não querias mais ser assim?
 

Foi nos Jovens sem Fronteiras, no grupo paroquial na igreja de Monte Abrão, que conheci porque a minha tia N’Taméssa pertencia ao grupo. Esta tia nunca desistiu de mim, viu alguma coisa em mim que eu não era capaz de ver. Ali encontrei pessoas que tinham uma outra perspetiva. Isso foi importante para perceber que havia outra via e que eu me sentia bem com nessa outra via.


O que queres que seja o teu futuro?
 

Eu quero que o meu futuro seja feliz naquilo que vou estar a fazer, porque quero mesmo ser psicóloga. E quero aprender tudo aquilo que tenho de aprender para me sentir feliz a trabalhar no âmbito da psicologia.