No livro Do Outro Lado do Espelho (Bertrand Editora), esta filha de um casal de diplomatas que viveu em 9 países e mais de 15 cidades conta o martírio dessa adolescência atribulada e meio perdida. Já recuperada, estudou Psicologia, “o seu destino”.



Porque é que quiseste contar a tua história em livro?
Quis ajudar as pessoas, baseada na minha experiência de vida. Tive que ir muito atrás no tempo para reviver tudo aquilo. Não foi muito difícil regressar ao passado porque foi algo muito grave, sério e traumatizante. Foi extremamente real e durou muitos anos. Já enquanto doente, percebi que o tempo estava a passar, mas não dava muita importância a isso. A doença é o nosso foco: ela torna-se um trabalho a full time.

 

Os teus estudos e vida amorosa ficaram em stand by e só aos 25 anos é que viveste coisas típicas da adolescência. Sentes esses anos como perdidos?
Em alguns momentos de tristeza, senti-os realmente como perdidos. Mas isso também se deve à pressão da sociedade e da minha família. O mais difícil foi não ter conseguido viver uma adolescência normal, pois estive sempre entre tratamentos. Sempre me senti 10 anos mais jovem do que sou, não só por não os ter vivido, mas também pela minha aparência de menina. Sentia que era mais jovem do que as pessoas da minha idade. Talvez fosse mais ingénua e me faltasse maturidade. O meu primeiro romance foi só aos 26 anos. Não gosto de falar de idades e nunca digo a minha. A idade, enquanto número, acaba por limitar-nos.

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Dizes que ainda estás em recuperação. Este tipo de doença fica sempre connosco?

É uma doença onde não se pode aplicar a palavra cura. Passamos por aquilo. “A Voz” fica em silêncio, mas temos de ter atenção para não perder peso, para não comermos menos nos momentos de stress.

Quando ouvias essa “Voz” – à qual chamaste Ana, que te “obrigava” a não comer e a fazer exercício extremo, e que te tornou “mentirosa, egoísta, manipuladora” – sentias que estavas louca?
Não. Mas não sei explicar como é que eu sabia que não estava louca. Nem sequer pensava nisso. Os loucos estão no manicómio em tratamento e, como eu não estava, então não estava louca. Alguma coisa estava ali a acontecer… Mas nunca usei esse termo.

Lembras-te do momento em que tiveste consciência de que tinhas um problema?
Lembro-me como se fosse ontem. Eu tinha uns 15 anos e vivia no Rio do Janeiro. Ouvi a minha mãe dizer no corredor que eu tinha anorexia. Foi ali que percebi: “Uau, realmente estou doente”. Percebi que aquela Voz não era uma amizade ou algo temporário: era uma doença, era “a doença”. Tinha 15 anos, 1,82 m e pesava 48 Kgs. Antes disso, tinha 58 kgs e, depois, ainda cheguei aos 29 kgs.

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“Quando se cresce num ambiente familiar privilegiado, como é possível que um drama como este te aconteça?”, poderão perguntar as outras pessoas…

A anorexia é uma doença que pode afetar qualquer pessoa, não interesse o status, a cor, a cultura, a raça, a idade. Nada isso importa porque se trata de uma doença psicológica. E mesmo as pessoas mais abastadas têm problemas: despesas, dívidas, divórcios. Tudo pode acontecer a todos nós. Esta doença é como um vírus.

Existe o preconceito de que as doenças psicológicas são facilmente curáveis, basta vontade própria?
A minha própria mãe durante muito tempo achava que se eu quisesse “ficar boa”, ficava. E não é assim, porque a doença é mais forte do que nós. Não é que sejamos fracos: aquilo é que realmente se apodera do nosso “eu”. É uma doença psiquiátrica que tem fatores genéticos e externos. Quem tem um distúrbio alimentar, inicialmente nem sabe que o tem. Porque está em negação e aquilo vem muito devagarinho. É uma doença muito matreira da qual só nos damos conta quando está instalada. O ter a noção do problema e depois o querer recuperar leva o seu tempo. É injusto pensar que basta querer. O “clique” de querer recuperar vem com o tempo. E cada um tem o seu próprio tempo.

Ao fim de 6 tratamentos, sentiste finalmente esse clique, graças à religião?
Sempre acreditei em Deus. Mas foi só no final da doença que Lhe pedi que me livrasse daquela Voz. E foi então que tive o clique, após 10 anos. A doença faz-nos acreditar que podemos ter uma vida plena e estar doente ao mesmo tempo. Precisei de 10 anos para perceber que não. Foi então que Lhe pedi que me livrasse daquilo ou que me levasse para junto d’Ele. Eu já não queria mais estar doente.

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Pensaste em suicidar-te?

Nunca pensei em tirar a minha vida. Mas houve momentos, principalmente no final, em que pensei que, se a minha vida fosse viver sempre com aquela Voz, então já não queria estar mais aqui.

A anorexia é uma doença psicológica. Mas como é lidar com a dor física que ela implica?
Estar a morrer de fome devido à anorexia é uma dor muito difícil de pôr em palavras. Não é uma dor como estar aleijada: é mesmo uma sensação de estares a morrer aos poucos, de sentires o teu corpo a canibalizar-se, de sentires o teu coração a desfalecer. Não é uma dor, é uma sensação do corpo estar a despedir-se, a falhar. É uma agonia impossível de descrever, uma sensação de fraqueza e desespero. Sentimo-nos sair do nosso foco e uma leveza como se já não estivéssemos tão presentes na terra. Há também uma sensação de medo.