É sexta-feira de manhã e, em Cem Soldos, o movimento concentra-se no Largo de São Pedro. É aí que se reúnem os jornalistas que, dentro de momentos, vão iniciar uma visita guiada aos espaços da aldeia que, durante o verão, o Bons Sons inundará de música. Os únicos veículos que se vislumbram estão estacionados e, num deles – uma das carrinhas da organização do festival – lê-se uma das frases fortes do evento: “Venha Viver a Aldeia!”.

A ligação entre o Bons Sons e a aldeia de Cem Soldos dificilmente poderia ser mais forte. Afinal, a aldeia é, literalmente, o palco do festival, sendo fechada ao trânsito e oferecendo os seus espaços – como eiras, largos e até a igreja – para as atuações. Numa das primeiras paragens do roteiro, o Diretor do Festival, Luís Ferreira, destaca os resultados de um inquérito feito à população: “94% da população da aldeia quer o Bons Sons e a sua continuidade”.

 

IMG 9084 Festival Bons Sons

 

A informação é relevante pelo papel da comunidade local no planeamento e execução deste festival, que, desde 2006, trouxe mais de 238 mil pessoas à aldeia. Neste período, a organização nunca mudou de mãos, ficando a cargo da associação SCOCS ou Sport Club Operário de Cem Soldos. É por essa razão que, depois da frase proferida de Luís Ferreira, procuramos a sede da associação.

Três minutos depois, encontramos a sede da SCOCS. Cerca de uma dezena de sócios vai preparando um almoço volante para os visitantes. Uma das sócias da SCOCS, Bianca Subtil, de 21 anos, interrompe o seu trabalho por uns minutos, para nos falar do histórico da ligação do festival aos jovens da aldeia.

 

 

Foi no 30º aniversário da SCOS que surgiu a decisão de criar um festival. Na altura, a associação não era juvenil, mas havia já uma ligação forte aos mais jovens. E, nas palavras de Bianca Subtil, “quando os jovens participam e organizam, as suas ideias acabam por acontecer”.

 

O “efeito Bons Sons”

Filipe Cartaxo tem 21 anos “nascidos e vividos” em Cem Soldos. Recorda-se de, ainda em criança, pedir à mãe para “ir na carrinha da associação, para participar nos trabalhos”. Hoje, faz parte da direção e não tem dúvidas: “cresci muito com a associação, a todos os níveis”.

De igual forma, também a aldeia cresceu com a SCOCS, explica. Para Filipe, existe mesmo um “efeito Bons Sons”. pessoas a comprar casas todos os meses, outras recuperam casas desabitadas. E existem consequências menos visíveis: “há muitas pessoas que saíram da aldeia para trabalhar e que agora querem voltar”.

 

Manuel Subtil Bianca Subtil Filipe Cartaxo e Miguel Atalaia fazem parte da SCOCS 3

Manuel Subtil, Bianca Subtil, Filipe Cartaxo e Miguel Atalaia fazem parte da SCOCS. 

 

O estudante ressalva que este efeito não se deve apenas ao festival. A ação da associação “dá vida à aldeia”: promove aulas de ginástica, natação ou ioga e dinamiza um grupo de teatro em que Filipe participa, por exemplo. Também garante serviços como a junta médica ou refeições baratas para os idosos da aldeia. “E aumentou muito o número de alunos da nossa escola”, refere Filipe Cartaxo. Apenas depois completa: “mas, sobre isso, é melhor falares com o Miguel”.

 

Uma Escola-Aldeia

Miguel Atalaia tem 29 anos e é natural de Cem Soldos. Um acidente de viação na estrada que faz a ligação a Tomar colocou-o irremediavelmente numa cadeira de rodas. Depois de terminar o curso superior, tomou uma decisão: “senti que fazia sentido estar ligado às dinâmicas locais e comunitárias”.

Olhando o futuro da aldeia, o dirigente destaca os vários projetos da SCOCS “que não podem terminar e que têm de ser solidificados”. A recuperação de uma casa para a construção de um lar – um dos objetivos que esteve na génese do festival – será uma das prioridades. 

 

 

Uma das principais mudanças que o festival trouxe, destaca Miguel Atalaia, foi “o peso institucional” entretanto conquistado. Foi, de resto, esse peso que permitiu a reestruturação da escola primária, garantindo a captação de novos alunos.

 


"Uma aldeia sem escola é uma aldeia que morre"
Miguel Atalaia, membro da direção da SCOCS


 

Há cerca de dois anos, a escola de Cem Soldos tinha 21 alunos e estava “em risco de uma redução drástica desse número”, recorda Miguel Atalaia. Foi essa a razão que levou a associação a pesquisar alternativas pedagógicas e apresentar ao Agrupamento de Escolas local uma proposta de “ensino através de projetos”, em que os recursos da aldeia são aproveitados pelas professoras, em relação direta com a comunidade.

Hoje, a Escola-Aldeia é uma realidade e, para o ano, abrirá duas turmas, sendo que “continuam a aparecer pais interessados”, explica Miguel Atalaia. A importância desta recuperação é resumida pelo dirigente numa frase: “Uma aldeia sem escola é uma aldeia que morre”.

 

Fazer, para acreditar

O estudo realizado pelo SCOCS detalha as razões para a taxa de 94% de aprovação junto dos habitantes. A visibilidade nacional e internacional é uma das razões elencadas. O espírito comunitário e de entreajuda é outro dos pontos sublinhados. Nas palavras Filipe Cartaxo, esse é mesmo “um dos segredos do Bons Sons – funciona devido à proximidade porque somos amigos e família”.

O envolvimento da população não é feito sem sacrifícios, explica outro dos sócios, Manuel Subtil. Desde 2015, o festival é realizado anualmente, o que aumentou a intensidade de trabalho e levou a que muitos dos habitantes abdiquem do seu período de férias, durante o verão. O “trabalho intenso” trouxe vantagens, salienta. Devido ao festival, há muitos casais jovens que se estão a fixar em Cem Soldos: “Há várias casas recuperadas e as turmas da escola estão preenchidas”.

 

Graças ao festival há mais jovens interessados em viver na aldeia asseguram os habitantes 1

Graças ao festival, há mais jovens interessados em viver na aldeia, asseguram os habitantes. 

 

Há ainda “um impacto que não se mede”, realça Miguel Atalaia: o contacto com diferentes faixas etárias e culturas e a abertura que daí resulta. A dinâmica do festival, tal como da aldeia, salienta, “vive das pessoas”. Por outro lado, o trabalho em conjunto cria “um sentimento de pertença” – uma dinâmica que resume numa frase: “Somos uma aldeia que acredita e que, para acreditar, faz”.

A tarde vai avançando em Cem Soldos, o almoço aproxima-se do final. Manuel Subtil, fala-nos da importância da associação na sua vida, face à doença que, progressivamente, lhe vem limitando os movimentos. “Estas coisas fazem com que saia de casa”, explica. A seu lado, Miguel Atalaia olha o conjunto de pessoas que hoje se deslocou até Cem Soldos e acrescenta apenas duas frases curtas, como se a elas se dirigisse. “É verdade”, concorda, acrescentando: “Cria um sentido”.

Festival Bons Sons: Para se viver a aldeia, há alguém que lhe dá vida