Ainda antes de entrar no Tribunal da Comarca de Lisboa, logo à primeira pergunta, Gonçalo confessa-se culpado. Dentro de minutos, irá desempenhar o papel de arguido, no caso de violência doméstica e homicídio que será simulado. Os restantes papéis do julgamento – como testemunhas, advogados, juízes ou funcionário judicial – foram escolhidos por votação. Desde o início, Gonçalo sabia querer ser arguido. “É a oportunidade de representar um papel”, conta.

Desde o início do ano letivo, duas turmas do 9.º de escolaridade do Colégio do Bom Sucesso têm trabalhado este caso, inseridos no projeto Justiça para Tod@s. Tudo começou com a definição do tema a ser tratado, através de votação. “Escolhemos a violência doméstica por ser um tema com atualidade”, explica Carolina, outra das estudantes.

 MG 7609 MG 7591


Os trabalhos envolveram, não só a preparação deste dia, mas também uma visita ao tribunal para acompanhar um julgamento real. Nesse dia, concordam os estudantes António e Carolina, foi logo possível ter “um conhecimento diferente” do sistema judicial: “Surpreendeu-nos a relação entre as leis e as consequências”. Para Francisco, outro dos alunos, foi uma surpresa "a quantidade de pessoas envolvidas". 


Quando a Justiça é para Tod@s

No total, 18 escolas de todo o país associaram-se à edição de 2019 do Justiça para Tod@s – um programa desenvolvido pela Forum Estudante e pela Abreu Advogados que se assume como “uma forma de promoção de valores democráticos através da educação para a Justiça e para os Direitos Humanos das gerações mais jovens [dos 12 aos 18 anos]”. As escolas inscritas trabalham um caso a ser julgado. Durante o ano 444 alunos participam na iniciativa, com 24 simulações de julgamento marcadas por todo o país. 

A sessão de hoje, no Campus de Justiça, em Lisboa, envolveu duas turmas e duas simulações. Para além do caso de homicídio e violência doméstica, foi ainda simulado um caso de tráfico de seres humanos. Teresa e Matilde ultimam os detalhes das suas alegações, quando relatam à FORUM a grande motivação dos alunos: “Foi uma surpresa ver todos a levar isto tão a sério”.

 MG 7585


No caso de Matilde, a experiência serviu ainda para outro fim. “Sempre pensei que gostaria de ser advogada e aproveitei para confirmar”, revela, sorridente. Para além disso, as estudantes pensam que esta é uma experiência que "fará falta a outros estudantes": “há muita gente que fala da Justiça, mas sem ter noção. Só conhecendo é que temos uma visão mais real”.

A mesma ideia foi destacada pela professora Catarina Custódio. “Esta experiência faz os alunos pensar e ter mais responsabilidade enquanto cidadãos”, destacou, salientando que “se desenvolve a ideia de que a Justiça somos nós que a fazemos”. Por outro lado, acrescentou, “trabalhar o tema da Justiça é também trabalhar os valores democráticos”.

O facto de os estudantes vestirem a pele das personagens de um julgamento tem impacto na motivação, acredita a professora. No mesmo sentido, sublinha, “os temas tratados são adequados à idade dos estudantes”, contribuindo para o seu envolvimento.

Um total de 444 estudantes, entre os 12 e os 18 anos, participa na edição de 2019 do Justiça para Tod@s. Por todo o país, são realizadas 24 simulações de julgamento. 


Para jovens e não só

O caso desenvolvido pelos estudantes contou com a ajuda do juiz Rui Coelho, do Tribunal da Comarca de Lisboa. Durante a manhã, foi o juiz que presidiu os trabalhos, interrompendo sempre que era necessária uma explicação. O objetivo, revelou à FORUM, passou por “desconstruir mitos e esclarecer os diversos papéis presentes num julgamento”.

Este conhecimento, realçou, é útil para os jovens, mas não só. O desconhecimento do sistema judicial português é “um problema transversal”. O juiz destaca “a contaminação da televisão” que colocou no imaginário coletivo características próprias do sistema judicial americano: “Já tive testemunhas que, quando juram dizer a verdade, procuram uma Bíblia ou procuram onde está o júri”.

 MG 7578


O conhecimento retirado desta experiência poderá ser muito importante no futuro, ao “fazer a diferença na forma como [estes estudantes] se relacionam com a Justiça”. Diariamente, recorda o juiz, há centenas de casos decididos pelos tribunais, sendo que apenas alguns são divulgados pelos media. “O aproveitamento noticioso pode gerar desinformação. Esta experiência pode ajudar a esclarecer”, conclui.