Gostaria de começar por lhe perguntar…
[interrompe] Um momento. Com quem é você pensa que está a falar?


Fernando Pessoa?
Erro comum. Para além de todos os sonhos do mundo, tenho em mim, como decerto saberá, um número considerável de heterónimos e semi-heterónimos. Há até quem me chame – gente onde dificilmente encontraríamos qualquer vestígio de graça ou talento, repare – Fernando “Pessoas”.


Muito bem. Quantas “pessoas” vivem dentro de si, ao certo?
É difícil dizer. Estima-se que o número ultrapasse a centena, no total. Há dias em que isto fica apertado, confesso [risos]. Há três “estrelas”, digamos assim: o Álvaro, o Ricardo e o Alberto. Mas penso que é injusto esquecer personalidades como o Bernardo Soares, o Alexander Search, o António Mora, o Vicente Guedes, o Raphael Baldaya, a Maria José...


E quando nasceu esta ideia de se desdobrar?
Perdoe-me, mas parece-me que “desdobrar” não será o termo correcto, faz-me sentir uma sobrecasaca ou, pior, um robe de chambre. Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Isto disse eu, em carta enviada ao meu camarada Adolfo [Casais Monteiro], que é outra forma de dizer “desde que me lembro”.


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Isso quer dizer que começou ainda em criança…
Sim. Por volta dos seis anos. Eu era uma criança isolada e apenas gostava de ser acompanhado pelas figuras que sonhava, sabe? O meu primeiro heterónimo foi Chevalier de Pas, que me escreveu várias cartas. Tanto quanto sei, criar amigos imaginários é bastante natural em crianças e foi, efetivamente, com bastante naturalidade que criei vários. Já me esqueci do nome de alguns e deles ficou apenas a saudade.


É possível ter-se saudade de algo que não existe?
O facto de algo ser inventado não implica a sua inexistência. É até ofensivo que coloque as coisas nesses termos. Aliás, o Alberto pede-me para dizer que vossa excelência tem a sensibilidade de um calhau. O Ricardo diz que até ele ficou irritado, imagine, e o Álvaro deseja que lhe caiam em cima três vigas de betão armado, pum, pum, pum. Já agora, se não sabe, fica a saber: é possível sentir-se saudade de qualquer coisa.



«Tanto quanto sei, criar amigos imaginários é bastante natural em crianças e foi, efetivamente, com bastante naturalidade que criei vários»


 

Várias das suas frases ou versos assumiram um estatuto quase proverbial. “O poeta é um fingidor”, “tudo vale a pena quando a alma não é pequena”, “para viajar basta existir”, “tenho em mim todos os sonhos do mundo”… Há alguma que seja a sua favorita ou que tenha um estatuto especial?
É uma pergunta difícil. Talvez possa destacar uma frase, mas pelo contexto que a envolve. Falo da famosa expressão “Primeiro estranha-se. Depois, entranha-se”, que seria o slogan para a entrada da Coca-Cola no mercado português. Bem, a bebida acabou por ser proibida em Portugal – o Governo onde já estava o “tiraninho” Salazar pensou que se tratava de droga. Mas, quer dizer, convenhamos, da Coca-Cola ao ópio ainda vai uma grande diferença. Não que eu seja especialista em ópio. Afinal de contas, o poeta é um fingidor... [risos]


Como podemos saber mais sobre a sua vida e obra?
Podem sempre visitar a casa em que vivi nos últimos 15 anos de vida, no Bairro de Campo de Ourique, em Lisboa – a Casa Fernando Pessoa. Ou então imaginem-me como vosso heterónimo. Afinal de contas, as figuras imaginárias têm mais relevo e verdade que as reais.